Daniel Filipe
Em todas as
esquinas da cidade
nas paredes dos
bares á; porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro
arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes
na vitrine da
pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação
de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia
o nosso amor
Em letras enormes
do tamanho
do medo da solidão
da angústia
um cartaz denuncia
que um homem e uma mulher
se encontraram num
bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de
conversa
e inventaram o amor
com caráter de urgência
deixando cair dos
ombros o fardo incomodo da monotonia quotidiana
Um homem e uma
mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura
e souberam
entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A
descoberta A estranheza
de um sorriso
natural e inesperado
Não saíram de mãos
dadas para a umidade diurna
Despediram-se e
cada um tomou um rumo diferente
embora
subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor
subitamente imperativo
Um homem e uma
mulher um cartaz de denúncia
colado em todas as
esquinas da cidade
A rádio já falou A
TV anuncia
iminente a captura
A policia de costumes avisada
procura os dois
amantes nos becos e nas avenidas
Onde houver uma
flor rubra e essencial
é possível que se
escondam tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo
É preciso
encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo
frutifique
Antes que a
invenção do amor se processe em cadeia
Há pesadas sanções
para os que auxiliarem os fugitivos
Chamem as tropas
aquarteladas na província
Convoquem os
reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos
Decrete-se a lei
marcial com todas as consequências
O perigo
justifica-o
Um homem e uma
mulher
conheceram-se
amaram-se perderam-se no labirinto da cidade
É indispensável
encontrá-los dominá-los convencê-los
antes que seja
demasiado tarde
e a memória da
infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância
no coração das pessoas
Fechem as escolas
Sobretudo protejam
as crianças da contaminação
uma agência comunica
que algures ao sul do rio
um menino pediu uma
rosa vermelha
e chorou
nervosamente porque lha recusaram
Segundo o diretor
da sua escola é um pequeno triste
Inexplicavelmente
dado aos longos silêncios e aos choros sem razão
Aplicado no entanto
Respeitador da disciplina
Um caso típico de
inadaptação congênita disseram os psicólogos
Ainda bem que se
revelou a tempo
Vai ser internado
e submetido a um
tratamento especial de recuperação
Mas é possível que
haja outros. É absolutamente vital
que o diagnóstico se
faça no período primário da doença
E também que se
evite o contágio com o homem e a mulher
de que fala no
cartaz colado em todas as esquinas da cidade
Está em jogo o
destino da civilização que construímos
o destino das
máquinas das bombas de hidrogênio
das normas de
discriminação racial
o futuro da
estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade
incontroversa das declarações políticas
Procurem os guardas
dos antigos universos concentracionários
precisamos da sua
experiência onde quer que se escondam
ao temor do castigo
Que todos estejam a
postos
Vigilância é a
palavra de ordem
Atenção ao homem e
á; mulher de que se fala nos cartazes
À mais ligeira
dúvida não hesitem denunciem
Telefonem á; polícia
ao comissariado ao Governo Civil
não precisam de dar
o nome e a morada
e garante-se que
nenhuma perseguição será movida
nos casos em que a
denúncia venha a verificar-se falsa
Organizem em cada
bairro em cada rua em cada prédio
comissões de
vigilância. Está em jogo a cidade
o país a
civilização do ocidente
esse homem e essa
mulher têm de ser presos
mesmo que para isso
tenhamos de recorrer á;s medidas mais drásticas
Por decisão
governamental estão suspensas as liberdades individuais
a inviolabilidade
do domicílio o habeas corpus o sigilo da correspondência
Em qualquer parte
da cidade um homem e uma mulher amam-se ilegalmente
espreitam a rua
pelo intervalo das persianas
beijam-se soluçam
baixo e enfrentam a hostilidade noturnas
É preciso
encontrá-los
É indispensável
descobri-los
Escutem
cuidadosamente a todas as portas antes de bater
É possível que
cantem
mas defendam-se de
entender a sua voz
Alguém que os
escutou
deixou cair as
armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas
E quando foi
interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz
e as palavras o faziam feliz
lhe lembravam a
infância
Campos verdes floridos
água simples correndo A brisa das montanhas
Foi condenado á;
morte é evidente
É preciso evitar um
mal maior
Mas caminhou
cantando para o muro da execução
foi necessário
amordaçá-lo e mesmo assim desprendia-se dele
um misterioso halo
de uma felicidade incorrupta
Impõe-se
sistematizar as buscas Não vale a pena procurá-los
nos campos de
futebol no silêncio das igrejas nas boates com orquestra privativa
Não estarão nunca
aí
Procurem-nos nas
ruas suburbanas onde nada acontece
A identificação é
fácil
Onde estiverem
estará também pousado sobre a porta
um pássaro
desconhecido e admirável
ou florirá na
soleira a mancha vegetal de uma flor luminosa
Será então aí
Engatilhem as armas
invadam a casa disparem á; queima roupa
Um tiro no coração
de cada um
Vê-los-ão
possivelmente dissolver-se no ar Mas estará completo o esconjuro
e podereis voltar
alegremente para junto dos filhos da mulher
Mais ai de vós se
sentirdes de súbito o desejo de deixar correr o pranto
Quer dizer que
fostes contagiados Que estais também perdidos para nós
É preciso nesse
caso ter coragem para desfechar na fronte
o tiro
indispensável
Não há outra saída
A cidade o exige
Se um homem de
repente interromper as pesquisas
e perguntar quem é
e o que faz ali de armas na mão
já sabeis o que
tendes a fazer Matai-o Amigo irmão que seja
matai-o Mesmo que
tenha comido á; vossa mesa e crescido a vosso lado
matai-o Talvez que
ao enquadrá-lo na mira da espingarda
os seus olhos vos
fitem com sobre-humana náusea
e deslizem depois
numa tristeza líquida
até ao fim da noite
Evitai o apelo a prece derradeira
um só golpe mortal
misericordioso basta
para impor o
silêncio secreto e inviolável
Procurem a mulher o
homem que num bar
de hotel se
encontraram numa tarde de chuva
Se tanto for
preciso estabeleçam barricadas
senhas
salvo-condutos horas de recolher
censura prévia á;
Imprensa tribunais de exceção
Para bem da cidade
do país da cultura
é preciso encontrar
o casal fugitivo
que inventou o amor
com caráter de urgência
Os jornais da manhã
publicam a notícia
de que os viram
passar de mãos dadas sorrindo
numa rua serena
debruada de acácias
Um velho sem
família a testemunha diz
ter sentido de
súbito uma estranha paz interior
uma voz
desprendendo um cheiro a primavera
o doce bafo quente
da adolescência longínqua
No inquérito
oficial atônito afirmou
que o homem e a
mulher tinham estrelas na fronte
e caminhavam
envoltos numa cortina de música
com gestos naturais
alheios Crê-se
que a situação vai
atingir o clímax