13 de fevereiro de 2011

É PRECISO PERNAS PARA CONQUISTAR O MUNDO?




É PRECISO PERNAS PARA CONQUISTAR O MUNDO?



Nasceu com as pernas fracas, só arriscando os primeiros passos aos cinco anos: tinha medo de iniciativas. Mamãe rastejava, agarrava-se aos móveis, pra lá, pra cá, limpando panelas, preparando refeições, reparando na casa crescente lá debaixo de seu mundo operoso. Pernas fracas e finas; “poliomielite reversível”: assustou a mãe e o pai seu primeiro pensamento.

Quando então percebeu que as pernas finas sustentavam o corpo inteiro arriscou-se a caminhar. Poderia aprender a ler, escrever, ir pra escola, inventar a história da menina bonita que corre assim que nasce.

Foi uma doença o que a feriu. Veio do nada. Escolheu-a, pois, na infância, é mais fácil atacar, e desferir nas pernas o golpe. E ela, sem palavras, choramingando, sem saber o que era consciência das pernas, temia o futuro: não caminhar impediria a coragem de transbordar dos olhos. Olhos verdes. Sem sombra de medo. A compensação do corpo.

O irmão mais velho, operante, nunca a julgou. Ensinou-a técnicas de caça, de desbravar quintais, lançamento perfeitos para derrubar jatobá, sem precisar comê-los. Esclareceu que as coisas eram daquele jeito: homens sempre um passo à frente. Ela, com compreensão de quem não caminha e tem apenas cinco anos, balançava a cabeça acatando a inteligência do irmão Carlos, que em pose de rei já era homem para salvar a irmã.

Quando aprendeu a caminhar, o receio era de reversão. Tudo que fez dali para adiante foi exagerado: limpava a casa na carreira, voando, com a vassoura em punho, baratinava de um canto a outro, sentindo as pernas reinserindo-a no mundo. Ela vivia, e caminhava. Quando era panela que precisava lavar, pulava sem sair do lugar, rumor de música no sacolejo das pernas; juntos aos movimentos havia os gritos, para que as pernas se mantivessem acordadas, e nunca mais caíssem no sono.

Aprendeu a ser valente: ponta-pé nos arrogantes.

Tornou-se decidida e corajosa: “Ahhhhhh, quer quebrar minhas pernas, menino!”

Fugia quando os pais plantavam desentendimento em casa. Agarravam-se, as mãos dela e do irmão, e corriam para algum lugar onde o mundo parecesse ser outro. O irmão chorava suplicando justiça, enquanto ela rezava para que as pernas não entristecessem. Abraçava-as. Fazia carinho. Expunha-as ao sol. Coçava-as. Cuidava para que elas não a deixassem sem chão.

Cresceu. Passos firmes, mas sem muita direção. Veio um grande amor. E a gravidez a fez sentir-se pesada. As pernas agüentariam. O filho salvaria seu futuro. Ela e ele seriam quatro pernas em busca de terra firme: Eles. Nós.

Nunca soube se queria direita ou esquerda; seria abusar das pernas; elas que a levassem para onde quisessem. O futuro não era feito apenas de escolhas tão simples. Poderia errar, cometer absurdos, ensinar o filho a viver, caminhar quilômetros e mais quilômetros, desde de que saísse do lugar: o que uma mulher com pernas não seria capaz de fazer!

O filho, eu, nunca aprendeu a caminhar com as próprias pernas; vire e mexe pede os passos da mãe emprestados. Ela cede: retira-os, coloca-os na vida do filho, e fica em casa esperando notícias de um futuro menos ingrato.

Queria que o filho tivesse nascido da batata de sua perna magra: fosse mais corajoso o menino. Nasceu mesmo do ventre, nove meses como os outros, molengo e cabeçudo; filho de uma barriga jovem: vai ver por tal causa vive empurrando com a barriga a existência.

Caminha sem parar ainda hoje em dia, atualizada. Carrega a eternidade na escassez das pernas. São firmes e sempre escondidas nas mesmas calças: mesmo com coragem não é exibindo-se que a vitória tenta aproximação.

As pernas, que de estupidez infantil não desbravaram o mundo ainda cedo, hoje, vivem a sorrir: limpam a casa, vão ao colégio, acompanham o único filho, admiram outras pernas mais torneadas. Alegres, elas até sonham com silicone, mas receiam ofender outra doença. Escolhem continuar mirradas e saudáveis.

Hoje, acreditam em Deus. E não abrem mão da felicidade. Sorriem com passos largos as pernas de outrora. E pernas, pra que te quero!









 
 
 
 
 
 
 
 
 

Extraido do Blog:
http://opensadorselvagem.org/
 
Raimundo Neto

Colunista da sessão "Fragmentos da vida cotidiana", sessão "Vida e Estilo", no site www.opensadorselvagem.org: Sobre detalhes de vidas a dois, sobre estar sozinho e bem acompanhado, sobre festas internas e lugares que talvez eu nunca conheça, sobre corações corajosos e suas vidas comuns e escolhas apocalípticas; sobre o medo do futuro, sobre o futuro que nunca chega, sobre ser outro, sobre viver.

Crônicas mais lidas:
O homem da minha vida: http://migre.me/3b3YK   
As asas do que não existe: http://migre.me/3b44w  
O agente da mudança: http://migre.me/3b45W  
O amor, a distância e a Turma da Mônica: http://migre.me/3b48l
A felicidade por R$ 4,90: http://migre.me/3b49W
Você possui projetos afetivos?: http://migre.me/3b4cW  



Saiu a 40ª edição da revista cadernos de teresina, e eu estou lá com um conto: 2º colocado no concurso contos de teresina. pra quem quiser conferir!


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Concurso contos de teresina-2008, 2° colocado: http://www.fcmc.pi.gov.br/


Revista malagueta nº4, nº6, nº8 também: www.revistamalagueta.com
"Eu poderia ter fugido da entrega, da busca recíproca, e morrido cada dia um pouco mais. Engolido calado um amor de mão única, mas que atropelava ferozmente aquela vontade preta e branca de desistir"


Raimundo Neto.

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